
Por dentro de Starfinder: Afterlight – ambição indie, narrativa ramificada e o charme da ficção científica com magia
Quando o estúdio independente de Barcelona Epictellers Entertainment revelou Starfinder: Afterlight, muita gente do círculo de cRPG levantou a sobrancelha: quem são esses novatos querendo adaptar a franquia de ficção científica da Paizo para um RPG de computador completo, com escolhas impactantes, romances e suporte a mods? A resposta veio rápido com a campanha no Kickstarter – mais de €530 mil arrecadados e uma comunidade vibrante se formando em torno de uma proposta clara: fazer um cRPG moderno com pegada AA, sem prometer o impossível, mas mirando alto no que realmente importa.
De AAA para o independente: por que a Epictellers existe
Fundada em 2023 por Ricard Pillosu e Albert Jane Goset, a Epictellers nasce do cansaço do ciclo de superproduções. Depois de passagens por empresas como Crytek e Smilegate, os dois decidiram reduzir o barulho, recuperar o controle criativo e trabalhar no gênero que mais amam – o cRPG clássico. “Depois do estrondo de Baldur’s Gate 3, parecia que o mercado ia encher de projetos do tipo. Não foi o que aconteceu”, admite Ricard. “A gente queria tentar, do nosso jeito.”
Sem publisher e com time enxuto (cerca de 30 pessoas), o estúdio montou um processo de desenvolvimento direto: poucas camadas de gestão, ferramentas próprias para escrita e iteração rápida, e uma regra de ouro para design de missões – múltiplas entradas e múltiplas saídas para que cada jornada do jogador pareça genuinamente pessoal.
Kickstarter: financiamento, mas principalmente comunidade
Embora totalmente financiado por fora, o estúdio recorreu ao Kickstarter para duas coisas difíceis de comprar: voz e validação. A campanha foi anunciada junto com o lançamento do Starfinder 2ª edição na GenCon, o que atraiu fãs de RPG de mesa imediatamente para a página do jogo. “A meta mínima caiu cedo, os primeiros stretch goals vieram e, mais importante, as pessoas começaram a se juntar no Discord”, explica Albert. “Nosso plano nunca foi inflar a lista de promessas; temos um conjunto finito de metas extras, e boa parte do que é grande – como dublagem ampla – só entrou porque a comunidade pediu e apoiou.”
Por que Starfinder? E por que agora?
No mar de cRPGs de fantasia, Starfinder se impõe por uma mistura deliciosa: naves, deuses, necromancia espacial e um tom mais aventureiro do que sisudo – algo mais Guardiões da Galáxia do que Jornada nas Estrelas. A Epictellers já jogava e mestrava RPGs de mesa há anos; entrar em contato com a Paizo foi quase natural. “Desde a primeira conversa o clima foi: ‘Tragam uma proposta’. Levamos nossa visão, eles curtiram e liberaram o caminho”, recorda Ricard.
Afterlight: o presságio que ninguém acredita
O subtítulo não é decorativo. Afterlight nomeia um evento ruim – daqueles que mudam o destino de galáxias. O protagonista presencia o prenúncio de uma extinção, ganha uma janela para impedir a tragédia e esbarra no descrédito geral. O ponto de partida: o planeta Aquiton, onde você precisa montar tripulação, firmar alianças e entender por que os eoxianos – mortos-vivos espaciais – entram no tabuleiro. A narrativa mira um equilíbrio delicado: épica, mas leve; séria, mas com humor pontual que humaniza a aventura.
Design narrativo com ferramentas próprias
A equipe construiu um pipeline que deixa roteiristas testarem conversas e ajustes ao vivo. O objetivo: flows de diálogo que respondem à sua ancestry, classe e escolhas anteriores, sem a sensação de “chave dicotômica”. Missões têm “múltiplas portas de entrada” (quatro ou cinco fontes diferentes para engatar um mesmo arco) e “três saídas básicas”: combate, persuasão/negociação e uma rota alternativa (atalhos, favores, suborno, missão paralela que alinha interesses). A ideia é que duas pessoas conversem depois e descubram caminhos que nem sabiam que existiam.
Duração e escopo: o que significa 40–60 horas
A estimativa oficial fala em 40–60 horas para a campanha principal, mas com um detalhe honesto: o estúdio está produzindo 80–100 horas de conteúdo total. Como parte é mutuamente excludente por design (companheiros que você não recruta, linhas de missão que se fecham por escolhas, rotas que você ignora), a maioria verá algo como metade desse material numa primeira jogada. É um jeito de garantir rejogabilidade sem depender só de dificuldade ou grind.
Mecânicas: três ações, reações configuráveis e “empurrar do penhasco”
A base é o conjunto de regras de Starfinder 2E, notadamente o sistema de três ações por turno. Para videogame, isso traz legibilidade e espaço de decisão: mover, agir, reagir – um pequeno xadrez por rodada. As reações seguem uma linha “à la Baldur’s Gate 3”: configuráveis por padrão (você escolhe o que dispara automático, o que pergunta e o que ignora). Nem todas as classes têm ataque de oportunidade por padrão – precisa de talento/classe certa, como no tabletop.
Interação ambiental abraça as liberdades da ficção científica: hacking de painéis, automação de máquinas, alcance maior para armas de fogo. Voos livres e gravidade zero ficaram fora do escopo inicial; sobrou uma mecânica de levitação para resolver fantasia em ambientes verticais. E sim: empurrar inimigos de alturas está na lista de “inaceitável lançar sem”.
Companheiros, romances e espécies bem diferentes
Romance aqui é opcional e serve ao aprofundamento emocional – não um checklist. A Epictellers quer que o vínculo mude nuances de diálogo e amplifique certos dilemas, sem virar eixo obrigatório. O desafio extra vem da diversidade de espécies: um Shirren telepata (insectóide) entende afeto de maneira distinta de um humano; um Borai (variante de morto-vivo) encara o corpo e a morte por outra lente. A equipe procura formas nativas, respeitosas e interessantes de representar isso em texto e mecânica.
Godot, Blender e mods desde o dia um
O projeto usa Godot como motor e Blender no fluxo de arte. A escolha tem um motivo cultural e prático: abrir caminho para modding cedo. O plano é integrar Steam Workshop no PC e lançar ferramentas pós-lançamento para que a comunidade expanda conteúdos: novos itens, mapas, companheiros e – quem sabe – campanhas completas. A ambição de longo prazo mira o espírito de Neverwinter Nights: gente criando aventuras dentro do mesmo jogo.
Plataformas, controle e Steam Deck
Foco inicial: PC (Windows e Linux), com build nativa para Steam Deck na mira. Controle em cRPG é casamento difícil, mas cada vez mais pedido – especialmente por quem joga na sala, com o PC ligado à TV. A Epictellers pretende oferecer um esquema de controle dedicado após o lançamento, aproveitando a adaptação que o Deck exige. Console tradicional? Só se a performance comercial no PC justificar.
AI criativa? Não, obrigado
Para a equipe, inteligência artificial serve para tarefas chatas, não para inventar personagens, mundos e falas. “Queremos a máquina lavando louça, não escrevendo o coração do jogo”, brinca Ricard. A criação permanece humana; automação, apenas onde acelera fluxo sem mexer no que dá alma ao projeto.
Filosofia de escopo: prometer o que dá para cumprir
Uma lição aprendida acompanhando campanhas passadas: stretch goals infinitos quebram projetos. A Epictellers lista metas claras e finitas, foca em itens que elevam a experiência base (como dublagem mais ampla) e segura o resto para depois, como atualizações pós-lançamento. É um antídoto contra o inchaço – e o principal motivo de a comunidade receber as novidades com entusiasmo, não com desconfiança.
O que esperar como jogador
- Um cRPG de escopo AA que não tenta ser “o novo AAA”, mas entrega densidade narrativa, escolhas e sistemas robustos.
- Uma fantasia científica saborosa: naves, deuses, morto-vivos espaciais, magia e tecnologia em fricção criativa.
- Missões com entradas variadas e resoluções múltiplas, para que o papo no Discord após o jogo renda descobertas genuínas.
- Ferramentas de modding planejadas para crescer com a comunidade.
- Um tom de aventura com humor sem perder a gravidade quando importa.
Conclusão
Starfinder: Afterlight não quer reinventar a roda; quer lapidá-la para o terreno certo. Ao mirar a interseção entre escolhas significativas, combate tático nítido e uma estética de “bagunça cósmica” divertida, a Epictellers encontra um espaço que muita gente sente falta desde sempre. Se a entrega acompanhar a ambição, temos chances de ver aqui aquele tipo de RPG que cresce com a comunidade, ganha mods, recebe runs diferentes e vira referência cult sem pedir licença.