A semana digital na Índia girou em torno de um só assunto: o governo tentou transformar o aplicativo estatal Sanchar Saathi em parte obrigatória de cada novo smartphone vendido no país – e acabou tendo que recuar. A ideia era simples no papel, mas explosiva na prática: dar às fabricantes 90 dias para colocar o app de fábrica em todos os aparelhos, como se fosse mais um ícone padrão ao lado da câmera e das mensagens.
O problema é que a ordem não falava apenas em instalar o aplicativo. 
O Ministério das Comunicações determinava que as empresas garantissem que as funcionalidades principais do Sanchar Saathi não poderiam ser desativadas ou restringidas. Em um mercado já saturado de bloatware e apps que o usuário nunca pediu, a perspectiva de um software oficial, grudado no sistema e blindado contra remoção, soou como um passo perigoso na direção errada.
O curioso é que o Sanchar Saathi, isoladamente, não é um vilão. Lançado em janeiro, o serviço foi pensado como uma plataforma de segurança: ele ajuda a denunciar linhas suspeitas, bloquear celulares roubados ou perdidos, rastrear aparelhos e dificultar o uso de dispositivos furtados no mercado paralelo. Em poucos meses, acumulou cerca de 14 milhões de downloads e algo em torno de 3 milhões de usuários ativos mensais, números respeitáveis em um país com problemas reais de golpes por telefone e clonagem de SIM.
Justamente por isso alguns defensores da ideia enxergavam na obrigatoriedade uma oportunidade de ampliar o alcance da ferramenta e endurecer o combate a fraudes. Mas, do lado das fabricantes, o alerta disparou imediatamente. Empresas como a Apple, segundo a imprensa local, não gostaram nada de receber a missão de distribuir um app estatal inamovível em cada iPhone. Além de questões técnicas, existe a preocupação de imagem: quem compra um aparelho premium não quer descobrir depois que o sistema veio com um convidado permanente enviado por um ministério.
Entre usuários e especialistas em direito digital, a discussão foi ainda mais profunda. A Suprema Corte da Índia já reconheceu a privacidade como um direito fundamental, e advogados apontaram que forçar a instalação de um app governamental com funções protegidas contra bloqueio seria, no mínimo, contestável nos tribunais. Hoje o Sanchar Saathi serve para bloquear celulares roubados; amanhã, uma atualização mais agressiva poderia ampliar a coleta de dados, a localização em tempo real ou o cruzamento de informações pessoais. Muita gente leu a medida como um teste de limite – até onde o Estado pode ir sem sofrer um grande revés político ou jurídico.
Diante da reação negativa, o governo mudou o tom. Autoridades passaram a enfatizar que o Sanchar Saathi deveria continuar sendo um serviço voluntário, que qualquer cidadão pode baixar se achar útil ou simplesmente ignorar. O Ministério, então, recuou oficialmente: a exigência de preinstalação deixou de valer, e as fabricantes não serão mais obrigadas a embarcar o aplicativo por padrão, embora a comunicação formal com todas as empresas ainda esteja em andamento.
O episódio, porém, vai além de um simples vai-e-volta burocrático. Ele expõe uma tensão global: como equilibrar o combate a crimes digitais com o respeito às liberdades individuais. Na União Europeia, a tendência é limitar o poder de apps pré-instalados e dar mais controle ao usuário. Na Índia, muitos temem escorregar para a chamada era do "tanto faz a privacidade": uma soma de pequenas obrigações – um app aqui, um cadastro biométrico ali – que, pouco a pouco, torna a vigilância algo banal.
Não por acaso, as redes se encheram de comentários pedindo para o país não ir na direção de regimes ultra-controladores e brincadeiras do tipo "não vão virar Coreia do Norte", com um fundo evidente de preocupação. Mesmo quem enxerga valor no Sanchar Saathi como ferramenta contra roubo e fraude defende que a escolha tem que continuar nas mãos de quem paga pelo telefone. Por enquanto, a lição é clara: pressão pública e resistência da indústria ainda funcionam. O desafio é garantir que os próximos projetos digitais nasçam com transparência, consentimento e limites claros desde o primeiro dia, em vez de depender de um grande barulho para serem corrigidos.