O PC sempre foi vendido como o território da liberdade total: qualquer desenvolvedor maluco lança seu jogo, qualquer jogador curioso encontra aquela pérola bizarra escondida no catálogo infinito. A polêmica em torno do indie de terror Horses mostra o quanto essa ideia é romântica. Depois que a Valve decidiu que o jogo não vai sair no Steam e carimbou a decisão como definitiva, o estúdio italiano Santa Ragione viu sua obra ser bloqueada justamente na maior vitrine do PC. No lado oposto, a GOG, loja da CD Projekt, fez questão de acolher o título, colocar o banner na página inicial e abrir pré-venda, defendendo o discurso de liberdade de escolha. 
Um único horror sobre uma fazenda de cavalos acabou virando campo de batalha entre proteção de menores, acusação de censura e o poder silencioso das plataformas digitais.
Horses é um jogo de terror psicológico em primeira pessoa, com cenas em live action e clima de pesadelo rural. A história acompanha catorze dias de estadia do protagonista em uma fazenda isolada, onde cavalos, funcionários e donos parecem viver sob regras estranhas e rituais que ninguém explica direito. Cada dia traz interações diferentes, tarefas curiosas e diálogos cheios de subtexto, colocando o jogador diante de ordens que testam obediência, complacência e limites pessoais. Em vez de sustos fáceis, o jogo aposta em desconforto lento: pequenas situações vão se acumulando até que a rotina da fazenda revele algo muito mais sombrio. O objetivo não é só assustar, mas fazer o jogador perceber até que ponto está disposto a colaborar com sistemas de abuso e poder.
A primeira submissão de Horses ao Steam aconteceu ainda em 2023. A Santa Ragione montou a página do jogo no Steamworks, definiu uma janela aproximada de lançamento e começou o processo normal de aprovação. Segundo a Valve, foi justamente o conteúdo dessa página que acendeu os alertas internos. A partir daí, a equipe de revisão de conteúdo pediu acesso à build, jogou o título e concluiu que ele não se encaixava nas diretrizes da loja. Os desenvolvedores acionaram a Valve novamente depois de fazer alterações, mas ouviram que a decisão de bloquear o lançamento era final. O próprio estúdio afirma que o motivo original dizia respeito a conteúdo sexual envolvendo um menor de idade, material que foi totalmente removido na versão atual. Mesmo assim, a Valve preferiu cortar o laço de vez com o projeto.
É nesse ponto que a discussão esquenta. Para muita gente, o simples fato de um estúdio ter considerado aceitável colocar qualquer tipo de sexualização ligada a criança já passa de todos os limites. Mesmo que as cenas tenham sido deletadas, isso seria sinal de um julgamento moral problemático dentro da equipe, e a postura de tolerância zero da Steam seria não apenas compreensível, mas necessária. Outros jogadores e críticos, porém, enxergam o caso por outro ângulo: o terror sempre flertou com temas extremos, justamente para expor horrores reais e denunciar estruturas violentas. Sem contexto claro, é fácil jogar tudo no mesmo saco e tratar como lixo algo que poderia ser uma crítica forte. O problema é que as regras do Steam são opacas; a plataforma raramente detalha por que um jogo passa e outro não, deixando criadores tateando no escuro sobre onde está a linha do aceitável.
Enquanto isso, a GOG faz questão de se posicionar na direção contrária. Em comunicado oficial, a loja diz ter orgulho de dar um lar a Horses, reforçando a ideia de que jogadores devem escolher as experiências que lhes dizem algo. O jogo ganhou destaque na home, pré-venda antecipada e divulgação nos canais sociais da plataforma. Para a Santa Ragione, isso não é só um abraço simbólico: a ausência no Steam significa ter acesso muito menor à base de clientes de PC, e a GOG tenta compensar parte desse buraco. O estúdio já comentou que ficar de fora da maior vitrine do mercado coloca o futuro financeiro da equipe em risco real, mesmo com versões previstas para Epic Games Store, Itch.io e Humble. Em 2025, depender apenas de lojas alternativas continua sendo quase um ato de sobrevivência.
Só que a narrativa de campeã da liberdade criativa não vem sem cobrança. Rapidamente, jogadores lembraram que a mesma GOG já havia recuado do lançamento do aclamado Devotion, horror taiwanês que virou alvo de controvérsia por causa de uma piadinha política envolvendo o presidente da China. O jogo foi anunciado, depois sumiu do calendário da loja e nunca mais voltou. Para uma parte da comunidade, é difícil levar a sério o discurso de que toda experiência merece um lugar quando uma obra apagada por pressão política continua banida, enquanto um título marcado por acusações de conteúdo com menor recebe tapete vermelho. A impressão é de que nenhuma plataforma age apenas por princípio; tudo passa por cálculo de dano de imagem, relacionamento com parceiros e mercados estratégicos.
Do lado dos criadores, o cofundador da Santa Ragione, Pietro Righi Riva, insiste em outro ponto: a falta de transparência. Segundo ele, poucas empresas concentram hoje tanto poder sobre a distribuição de jogos quanto a Valve e companhia, e mesmo assim operam com critérios pouco claros. Quando um e-mail de recusa pode colocar em risco a continuidade de um estúdio, essas plataformas deixam de ser apenas lojinhas digitais e viram guardiãs do que pode ou não existir na cultura dos games. Não se trata apenas de vendas, mas de decidir quais temas podem ser explorados, até onde a arte pode ir ao lidar com assuntos tabu e quem está autorizado a incomodar o público com questões difíceis.
Para o jogador comum, tudo isso costuma aparecer só como notícia distante, mas o impacto é bastante concreto. Se um game não entra no Steam, ele simplesmente desaparece do radar da maioria. Menos cliques, menos streamers testando, menos matérias em portais, menos promoções gigantes. Mesmo que Horses esteja em GOG, Epic e outras lojas, a falta de presença na plataforma dominante limita o alcance a um nicho de curiosos. O que parece uma decisão isolada sobre um jogo de terror de nicho ajuda a definir quais experiências se tornam parte da conversa principal sobre videogames e quais ficam confinadas a comunidades pequenas e dispersas.
No fim, o caso Horses expõe um dilema que a indústria ainda não resolveu: onde traçar a fronteira entre proteção legítima e censura paralisante. Muitos defendem padrões rígidos e inegociáveis quando o assunto toca qualquer forma de sexualidade ligada a crianças, ainda que o contexto seja de crítica ou denúncia. Outros alertam que expulsar qualquer obra que toque em temas pesados empurra a arte para um lugar seguro, mas raso, no qual quase nada relevante é dito. Enquanto as regras continuarem vagas e decisões desse porte forem tomadas a portas fechadas, cada novo jogo polêmico será mais um gatilho para crise, boicotes e campanhas em redes sociais. Horses, goste-se dele ou não, virou sintoma de um cenário em que algumas vitrines decidem silenciosamente quais horrores podemos encarar e quais jamais teremos chance de ver.