Co-fundador da Rockstar Games e uma das principais mentes por trás de séries como Grand Theft Auto e Red Dead Redemption, Dan Houser anda falando quase tanto de inteligência artificial quanto de jogos. 
Enquanto divulga seu novo livro A Better Paradise Volume One: An Aftermath, ele vem usando entrevistas para algo maior do que marketing pessoal: refletir em voz alta sobre quem está tentando empurrar a geração de conteúdo por IA para o centro da cultura pop.
Em conversa com Chris Evans no programa The Chris Evans Breakfast Show, da Virgin Radio UK, Houser fez questão de separar duas coisas: IA como ferramenta e IA como substituta de gente de verdade. A tecnologia em si, ele admite, já é poderosa e pode ser útil em vários estágios de produção. O problema, na visão dele, é o grupo de executivos, investidores e evangelistas que trata a IA generativa como solução mágica para tudo, da escrita de diálogos à direção criativa de um projeto inteiro. Para ele, muitos desses defensores não são exatamente as pessoas mais humanas ou criativas da sala, embora se comportem como se soubessem melhor do que todo mundo o que deve ser o futuro da criatividade.
Houser enxerga um certo grau de arrogância nessa tentativa de uma minoria do setor de tecnologia definir o que é ser humano com base em modelos estatísticos. A arte, lembra ele, nasce de contradições, emoções confusas, experiências traumáticas, humor estranho, escolhas pouco lógicas. Quando a cultura passa a ser tratada apenas como um produto para otimizar cliques, engajamento e custo por hora, corre-se o risco de perder justamente aquilo que faz uma história, um personagem ou um mundo aberto grudar na memória do público por anos.
Questionado se acredita que a IA generativa vai entregar o sucesso absoluto que tantos executivos vendem em apresentações para investidores, Houser foi direto: ele duvida. E usa uma imagem forte para explicar. Os modelos hoje se alimentam do que está disponível na internet, mas a própria internet está sendo inundada por textos, imagens e sons produzidos por essas mesmas máquinas. Em algum momento, a IA começa a treinar em cima do próprio lixo reciclado, como um rebanho alimentado com restos do próprio rebanho, até surgir uma espécie de encefalopatia digital, um equivalente conceitual da doença da vaca louca.
O resultado, segundo ele, é previsível: um oceano de conteúdo tecnicamente correto, mas cada vez mais parecido entre si. Diálogos que funcionam, mas não surpreendem; missões aceitáveis, mas genéricas; roteiros que parecem escritos pelo mesmo cérebro cinza. Jogadores já reclamam há anos do famoso conteúdo pasteurizado, o chamado conteúdo de normie, e a industrialização da IA corre o risco de turbinar esse efeito. É claro que há casos em que o público quase não percebe, como em alguns trechos de projetos recentes em que IA foi usada sem grande alarde. Mas quando o uso deixa de ser pontual e passa a ser fundamento criativo, a sensação de mesmice tende a explodir.
Ao mesmo tempo, Houser não se coloca como profeta do fim do mundo. Ele insiste que está menos assustado do que muita gente em relação à ideia de a IA roubar todos os empregos criativos. Na visão dele, quem tem talento genuíno, repertório e visão autoral vai acabar usando essas ferramentas como uma extensão da própria cabeça, do mesmo jeito que gerações anteriores adotaram programas de edição, engines gráficas e middleware de física. Já quem sempre tratou criatividade como tarefa burocrática pode ser substituído por scripts e modelos, gerando aquele tipo de trabalho que ninguém lembra uma semana depois de consumir.
Uma parte da preocupação da comunidade vem menos da tecnologia e mais da forma como grandes empresas estão tentando usá-la. Em vários estúdios, experimentos com IA vieram acompanhados de cortes de pessoal em roteiros, QA, arte e dublagem. Enquanto isso, executivos falam em eficiência, sinergia e escalabilidade, como se a planilha fosse mais importante do que a experiência do jogador. No curto prazo, muitos consumidores realmente não ligam, desde que o resultado seja aceitável. Jogos como ARC Raiders, que usaram IA em certas etapas, não viraram polêmica só por isso. Mas basta alguns projetos grandes abusarem da ideia de roteiro semi-automatizado para que o público comece a sentir que algo está vazio por trás da produção.
Há ainda o lado financeiro da história. O entusiasmo em torno da IA lembra muito o hype de cripto e blockchain: dinheiro jorrando em hardware, nuvem, modelos cada vez maiores, placas de vídeo se tornando ouro digital. Empresas como a Nvidia viram o faturamento disparar montado nesse tsunami. Se o mercado descobrir que a IA generativa não é a tal solução universal que faz tudo mais rápido, mais barato e melhor, alguém vai pagar a conta. Especialmente as companhias que demitiram equipes inteiras confiando que os algoritmos fariam o trabalho com meia dúzia de prompts e um monte de GPUs.
A trajetória do próprio Houser é um contraexemplo vivo dessa mentalidade de atalho. Séries como GTA e Red Dead Redemption não se tornaram fenômenos culturais por serem eficientes, e sim por serem gigantes, cheias de detalhes obsessivos, diálogos estranhos, escolhas de ritmo discutíveis. Há quem critique as missões mais engessadas de Rockstar, a sensação de trilho, a movimentação dura em certas configurações, principalmente em telas de 60 Hz. Mas até essas imperfeições carregam uma assinatura humana, resultado de decisões e discussões internas, não de um modelo estatístico buscando a média.
No fim, a visão de Houser sobre o futuro parece equilibrada. A IA generativa vai continuar evoluindo e fazendo parte da produção de jogos, filmes, livros e campanhas, e ninguém vai conseguir simplesmente desligar esse processo. Só que, na leitura dele, o cenário real não é um mundo dominado por máquinas geniais, e sim uma paisagem cheia de conteúdo barato, rápido e esquecível convivendo com menos, porém mais marcantes, obras guiadas por pessoas de carne e osso. São esses projetos, feitos por gente com medos, vícios, ideias malucas e intuição, que têm chance de atravessar modas tecnológicas e continuar relevantes muito depois de a atual febre de IA esfriar.