A Samsung está mais uma vez mexendo na forma como governa o seu império tecnológico e traz de volta um modelo que muita gente considerava coisa do passado: dois CEOs dividindo o topo da hierarquia. Para uma empresa que domina ao mesmo tempo o mercado de smartphones e o de memória, essa não é uma mudança de fachada, mas uma tentativa clara de deixar um conglomerado gigantesco mais ágil em plena era da inteligência artificial, da corrida por chips de alto desempenho e da pressão por margens em celulares premium.
Em vez de concentrar todas as decisões em um único executivo, a Samsung passa a colocar lado a lado as duas figuras que vivem mais de perto os campos de batalha do momento: o chefe da divisão de dispositivos, com foco na família Galaxy e em toda a experiência do usuário, e o comandante do negócio de semicondutores, onde nascem as memórias e componentes que alimentam data centers de IA, PCs, consoles e o próprio ecossistema mobile da marca.
Por que a Samsung está voltando ao modelo de dois CEOs
A reestruturação, detalhada pela imprensa coreana como parte do tradicional giro anual de executivos, resgata uma hierarquia dividida que a companhia já havia usado em outras fases de transformação. 
Agora, porém, o contexto é bem mais extremo: a demanda por IA explodiu, o apetite do mercado por HBM (High Bandwidth Memory) está no limite da capacidade de produção, e concorrentes dos Estados Unidos e da China disputam cada wafer de ponta nas fábricas globais.
Nesse cenário, o presidente Roh Tae-moon, conhecido internacionalmente como TM Roh, passa a ser o CEO responsável pela divisão Device eXperience (DX), que engloba smartphones Galaxy, dobráveis, wearables e boa parte da eletrônica de consumo da marca. Ele já vinha atuando como líder de fato do negócio móvel, mas agora ganha o título formal e um assento compartilhado no topo da estrutura decisória.
Do outro lado, o vice-presidente Jun Young-hyun continua no comando da divisão Device Solutions (DS), que cuida da memória, do armazenamento e de outros chips essenciais. É essa área que produz LPDDR5 para celulares, HBM para aceleradores de IA e uma série de soluções de memória que historicamente garantiram boa parte dos lucros da Samsung. Ao colocá-lo como co-CEO, a empresa manda um recado direto: o futuro da companhia depende tanto da força da marca Galaxy quanto da capacidade de manter liderança tecnológica em semicondutores.
SAIT ganha novo chefe vindo de Harvard e foco em pesquisa de base
A dança das cadeiras não parou na linha de frente do negócio. Jun Young-hyun deixa o comando do Samsung Advanced Institute of Technology (SAIT), o grande laboratório corporativo da empresa, que passa a ser liderado por Park Hong-kun, professor de Harvard especializado em nanociência e tecnologias quânticas. Para um grupo que tradicionalmente promove talentos internos, trazer um acadêmico estrangeiro para o centro de P&D é um gesto incomum e revelador.
O SAIT não está preocupado com o próximo modelo de celular ou com pequenos ajustes em um chip já existente. É lá que nascem projetos de longo prazo, como novos materiais, arquiteturas experimentais de processadores, dispositivos quânticos e métodos radicais de processamento de dados. Ao colocar um pesquisador de renome internacional à frente do instituto, a Samsung indica que está disposta a misturar a disciplina de engenharia corporativa com a curiosidade e o espírito de laboratório típico da universidade, assumindo mais risco em troca da possibilidade de grandes saltos tecnológicos.
Chips neuromórficos: quando o silício tenta imitar o cérebro
Entre as principais missões de Park Hong-kun está acelerar os estudos em semicondutores neuromórficos. Diferente dos chips tradicionais, que separam fisicamente a parte que calcula da parte que armazena dados, os projetos neuromórficos tentam copiar a lógica do cérebro humano: um enorme conjunto de unidades simples, onde processamento e memória ficam lado a lado, conectadas em rede e operando de forma massivamente paralela.
Esse desenho inspirado em neurônios e sinapses pode trazer ganhos enormes de eficiência energética e de desempenho em tarefas de IA, principalmente quando falamos de inferência embarcada em dispositivos de borda. Em vez de mandar tudo para a nuvem, smartphones, relógios, fones de ouvido, carros e equipamentos industriais poderiam rodar modelos complexos localmente, consumindo menos bateria e reagindo com mais rapidez. Se a Samsung conseguir transformar essas pesquisas em produtos comerciais, ganha uma arma poderosa para diferenciar seus futuros Galaxy e outros dispositivos conectados.
Explosão de demanda por HBM e aperto nos preços de LPDDR5
Enquanto o discurso estratégico soa ambicioso, o dia a dia da memória está longe de ser tranquilo. A corrida por HBM, essencial para placas de vídeo e aceleradores dedicados a treinar e rodar modelos de IA, está consumindo capacidade de produção que antes era destinada a outras linhas de DRAM. Resultado: fabricar LPDDR5 para celulares fica mais caro justamente quando as marcas tentam segurar o preço final dos aparelhos.
Para a Samsung, essa disputa vira um jogo de equilíbrio delicado. A divisão DS enxerga margens gordas ao priorizar HBM e atender gigantes de nuvem e empresas de IA que compram em volumes astronômicos. Já a divisão DX precisa de LPDDR5 com preço competitivo para que a próxima leva de Galaxy continue atrativa para o consumidor comum. Com dois CEOs, a tensão entre maximizar lucro na memória e manter os smartphones acessíveis deixa de ser uma batalha silenciosa de bastidores e sobe diretamente à mesa de quem define a estratégia máxima.
Galaxy S26 Ultra, Snapdragon 8 Elite Gen 5 e a conta do topo de linha
Como se não bastasse o aperto na memória, a eletrônica de ponta do lado do processador também pesa. Rumores da indústria apontam que o futuro Galaxy S26 Ultra deve usar o Snapdragon 8 Elite Gen 5 da Qualcomm em regime de exclusividade. Para o consumidor, isso significa ter em mãos um dos chips mais rápidos do ecossistema Android. Para a Samsung, significa adicionar mais um componente caríssimo à lista de custos do aparelho.
Entre LPDDR5 inflacionada, HBM disputada a tapa no mercado corporativo e uma plataforma Snapdragon de elite, a divisão móvel navega sob forte pressão de custos enquanto precisa continuar entregando grandes saltos em câmera, bateria, conectividade e recursos de IA generativa. Não dá simplesmente para empurrar tudo para o preço final, porque o segmento ultra-premium já opera em um patamar que assusta muitos compradores. Nessa conjuntura, ser ágil deixa de ser um slogan e vira a capacidade concreta de renegociar contratos, rever especificações e ajustar margens quase em tempo real.
Dois CEOs tornam a Samsung mais rápida ou mais confusa?
Modelos de co-CEO não são exatamente consenso no mundo corporativo. Críticos apontam risco de responsabilidade difusa, decisões demoradas e disputas de ego entre lideranças com o mesmo nível hierárquico. A aposta da Samsung para evitar esse caos é delimitar com clareza os territórios: TM Roh cuida da experiência do consumidor e da marca Galaxy de ponta a ponta, enquanto Jun Young-hyun responde pelas fábricas, pela tecnologia de memória e pelo fornecimento de componentes.
Os temas em que hardware e produto final se misturam de forma inseparável – como a combinação ideal entre HBM, LPDDR5, chips de aplicação e recursos de IA embarcados – serão, em teoria, tratados em conjunto pelos dois CEOs. No melhor cenário, isso leva a uma coordenação mais fina entre cronogramas de chips e lançamentos de dispositivos, com a Samsung explorando ao máximo o fato de controlar tanto a produção de memória quanto a vitrine dos smartphones. No pior, abre espaço para disputas internas e insegurança entre investidores, que passam a se perguntar quem, afinal, é o verdadeiro capitão do navio.
Por enquanto, o recado vindo de Seul é claro: em um mundo em que IA, memória e dispositivos formam um sistema único, a era do CEO universal está dando lugar a uma dupla especializada. Um pensa primeiro no usuário final e no ecossistema Galaxy; o outro vive imerso em processos de fabricação, roadmaps de DRAM e negociações com gigantes de nuvem. A essa dupla soma-se um novo chefe de pesquisa obcecado por chips inspirados no cérebro. É com esse trio que a Samsung quer garantir que, na próxima onda de computação, ela continue definindo tendências em vez de apenas correr atrás delas.